“Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas
expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em
que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos estes anos, muitas vezes
acalentei o projeto de começar este livro; de todas as vezes fui detido por uma
espécie de vergonha e de repulsa. Pois será mesmo necessário contar minuciosamente
tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?”
1
(p. 11).
Até Lévi-Strauss demorou a superar a “vergonha” ou o “asco” de contar sobre suas
expedições, mas, felizmente, o grande pensador acabou nos brindando com um clássico
da
antropologia. Citar esse trecho da grandiosa obra Tristes Trópicos
1
para abrir essa resenha remonta a ideia
de superar o silêncio e o medo, da contribuição de tantas vozes, icônicas ou não,
para
construir sentidos na vida e de que toda narrativa apresenta uma interpretação autoral,
considerando miudezas e insignificâncias, proezas e fracassos, nesse habitar
corpo-mundo. Na maioria das vezes, palavras escritas sobre os outros implicados em
nós,
na tentativa de interpretar o mundo e a nós mesmos.
O livro Existir e Não Pertencer: Notas Autoetnográficas de um Cientista Social no
Campo da Saúde
2
, de Nelson
Filice de Barros, atrai o leitor desde a sua proposta, explicitada nas notas
introdutórias: apresentar uma autoetnografia em que o cientista social faz parte do
próprio objeto da narrativa. Nesse caso, o livro apresenta uma autorreflexão, que
Barros
denomina de “prosa”, construída a respeito de uma trajetória de 25 anos como docente
e
pesquisador, sob o argumento central de “existir como cientista social no campo
da saúde e não pertencer a ele” (p. 14).
Logo na introdução, o autor remete a autoras e autores, brasileiros e estrangeiros,
com
os quais dialogou intensamente, como Brah, Anzaldúa, Bauman, Hall, Williams, Hoggart,
Thompson, Gilroy, Freire, Luz, Marsiglia e Nunes, que se destacaram como guias regulares
no seu percurso em busca de “consensos lastreados nas diferenças”. A narrativa é
construída em quatro capítulos: EU-DIASPÓRICO: Universidade como Espaço de
Diáspora, em que aborda e problematiza a noção contemporânea de diáspora,
associada a qualquer grupo que abandona seu lugar de origem; EU-ESTRANHO: Notas
sobre a Construção Social de uma Identificação, tomando como referência um
cientista social “estranho” no campo da saúde, em movimentos de medo e coragem em
meio a
microinvalidações, ataques e agressões, mecanismos ancestrais de controle e a edificação
de seu modo de agir; EU-AMBIVALENTE: Notas sobre Existir entre
Dualidades, em que discute a falta do “reino social” e o exercício
classificatório de produzir leigos e não médicos no campo da saúde, que resultaram
na
necessidade de eliminar fronteiras para enfrentá-los; CONHECIMENTO DE FRONTEIRA:
Ativos Sociais das Diferenças, em que discorre sobre como a saúde passou a
ser a sua “casa-lar”, ainda que habitando a “terceira margem do rio”. E, por fim,
CODA: A Minha Prosa Não é um “Identikit”, tendo como últimas
palavras uma parte da letra da Canção do Novo Mundo.
Autoetnografia
3
vem do grego a partir
da junção dos termos auto, significando próprio, em si mesmo;
ethnos, como nação, povo, grupo de pertencimento; e
grafo, forma escrita, grafia. O texto problematiza o fazer, o estar
e o pertencer ao campo da saúde de modo a descortinar impressões, reflexões e vivências
do corpo-trabalhador, estranho, estranhado, como um ser diaspórico-ambivalente
performando numa área que não é a sua. Tomando o seu próprio fazer e a forma de estar
no
mundo profissional e acadêmico, a escolha do tema e a perspectiva metodológica assumidos
por parte do autor despertam o interesse de leitores, especialmente os da área da
saúde,
ainda pouco familiarizados a produções desse tipo, que colocam a possibilidade de
construção de conhecimento baseado numa narrativa autorreferenciada. Desde o início,
Barros esclarece o sentido de sua empreitada como “uma autoescavação que me
aproxima de muitos outros corpos que se experimentam em lugares sociais que nunca
foram plenamente seus e/ou que eles nunca quiseram pertencer” (p. 14).
Para Ellis et al.
4
, a autoetnografia é
uma abordagem de pesquisa e escrita que busca analisar a experiência pessoal para
compreender a experiência cultural, como um ato político, socialmente justo e
consciente. Considerada uma prática anti-hegemônica, está no rol de análises culturais
fundamentadas na narrativa pessoal, desenvolvida com “lente crítica em uma
práxis dentro↔fora, de modo a entender quem somos nas nossas comunidades”
5
(p. 71).
Historicamente inserida na tradição interacionista da Escola de Chicago (Estados Unidos)
3
, a autoetnografia foi atualizada.
Segundo Maia & Batista
6
, o
acolhimento do método no Brasil se deu mais recentemente, a partir da entrada, nos
centros acadêmicos, de grupos previamente marginalizados devido a seu pertencimento
racial, étnico, de identidade de gênero ou de orientação sexual. Incorporados e
reconhecidos especialmente devido a políticas afirmativas e de inclusão, mulheres
negras
e homens negros, quilombolas, indígenas, pessoas LGBTQIA+, entre outras, são hoje
uma
parcela de pesquisadores encorajados a construir conhecimento de seus grupos sociais
interiormente.
“...A autoetnografia tem a autorreflexão como elemento básico no estudo de grupos
sociais em que o pesquisador faz parte de seu próprio objeto e universo de pesquisa.
Sua atualidade e interesse resulta de uma transformação política e epistemológica,
num contexto pós-colonial ou decolonial, quando indivíduos pertencentes a grupos
sociais que antes se constituíam em ‘objetos’ de estudo se transformaram em sujeitos
e produtores de conhecimento, gerando um profundo questionamento das bases do
discurso científico sobre neutralidade e distanciamento social entre pesquisador e
universo de pesquisa”
6
(p. 240).
Barros recorre à autoetnografia performática
7
para contar sua trajetória e refletir sobre ela: uma abordagem
teórica e metodológica que procura dar voz aos “autores das histórias”, vozes
rotineiramente silenciadas e negligenciadas; um método que visa problematizar
subjetividades subalternizadas, à margem dos poderes hegemônicos. Em tempos de fortes
movimentos decoloniais e identitários, a autoetnografia performática é uma metodologia
qualitativa que toma o corpo como lugar privilegiado para a produção de
conhecimento:
“Considerando os pressupostos dos estudos de performance, que compreendem o corpo
e suas performances como um local privilegiado para a produção de conhecimento, a
autoetnografia performática, um dos tipos possíveis de autoetnografia, apresenta-se
como uma estratégia ‘método+lógica’ que promove a quebra de silêncios
individuais-coletivos relacionados a sistemas de relações e produção de conhecimento
hegemônicos, eurocêntricos, brancos, patriarcais, machistas e
cis-heterossexistas”
7
(p.
2).
Como o próprio Barros nos diz, suas anotações, suas lembranças, seus presentes, seus
passados, vivos e mortos possibilitaram contar a história de um cientista social no
campo da saúde em sua trajetória como ser diaspórico-estranho-ambivalente, num texto
etnográfico transformado em ato performático: “vida, narrativa e melodrama sob
os auspícios do capitalismo neoliberal tardio”
8
(p. 2). Norman Denzin é enfático ao defender a
autoetnografia performática a partir de uma nova genealogia: “Não é analítico,
nem é profundamente teórico. É mais do que escrita pessoal ou crítica cultural. É
mais do que desempenho. Mas é performativo. É transgressor. É resistência. É
dialógico. É ético. É político, pessoal, corporificado, colaborativo, imaginativo,
artístico, criativo, uma forma de intervenção e um apelo à justiça social”
8
(p. 2).
Barros encontrará o seu público apoiado numa história instigante que não termina;
pois,
de fato, a cada leitor e a cada leitura, podem surgir novas interpretações. Muitos
se
reconhecerão (ou não), alguns serão estimulados a compartilhar suas próprias
experiências e performar novos conhecimentos, muitos se identificarão e aceitarão
o
diálogo, embora não sejam cientistas sociais. Afinal, o mundo se move sem fronteiras,
apesar da insistência na imposição de barreiras. E ainda que sejamos estranhos um
ao
outro, um com o outro, somos seres cada vez mais dependentes de compreensão e
solidariedade.