A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome complexa considerada um grande problema
de saúde pública. Diferentes subtipos de IC são classicamente definidos com base na
fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE).
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Embora seu prognóstico tenha melhorado nas últimas décadas – explicado, em parte,
pelos grandes avanços terapêuticos
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– a IC persiste com uma alta mortalidade influenciando negativamente a qualidade de
vida.
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Nesse sentido, sintomas comuns experimentados nessa doença, como a falta de ar e a
intolerância ao exercício, contribuem muito para esse declínio acentuado na qualidade
de vida dos indivíduos.
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Outra condição, considerada um importante fator de risco que geralmente acompanha
a IC, é a disfunção pulmonar.
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Os comprometimentos respiratórios observados na IC podem estar relacionados a diversas
razões, como comprometimento da mecânica pulmonar e da difusão gasosa,
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além de fraqueza muscular respiratória – agravando o aumento da dispneia, sendo uma
das principais limitações ao exercício físico.
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A espirometria é um teste amplamente utilizado que permite a análise da função pulmonar
– medindo a quantidade de ar inspirado e expirado ao máximo. Como a doença pulmonar
obstrutiva crônica compartilha sinais e sintomas semelhantes aos da IC, sua identificação
em indivíduos com IC pode ser um desafio; nesse sentido, a espirometria pode ajudar
a confirmar o diagnóstico.
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Na avaliação da gravidade potencial de algumas doenças pulmonares, o teste ergométrico
também pode ser útil, observando uma série de parâmetros, como a relação volume expiratório
forçado no primeiro segundo/capacidade vital forçada (VEF1/CVF).
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A gravidade da doença ainda pode ser classificada com base no VEF1 quando está abaixo
do limite inferior da normalidade (variando de leve quando ≥70% do previsto a muito
grave quando <35% do previsto). Embora a própria IC possa levar a uma diminuição do
VEF1 e da CVF em cerca de 20% do previsto,
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além do fato de que um VEF1 pior pode predizer maior mortalidade,
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evidências convincentes que examinem o papel prognóstico do VEF1 no cenário da IC
ainda precisam de mais investigação.
Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Ramalho et al.
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compartilharam dados de um estudo de coorte com 111 adultos brasileiros (média de
idade: 57 anos; 40% mulheres) com IC crônica, sem doença pulmonar diagnosticada e
que realizaram teste de força muscular respiratória e espirometria; os participantes
foram posteriormente acompanhados por uma média de 2,2 anos. Alguns dos objetivos
do estudo foram analisar a relação VEF1/CVF com (a) pressão inspiratória máxima, (b)
FEVE e (c) prognóstico dos pacientes – este último definido como um composto de morte
cardiovascular (CV), transplante cardíaco de emergência ou implante de dispositivo
de assistência ventricular esquerda. No geral, a FEVE média inicial foi de 38%, mas
24 dos pacientes apresentaram FEVE >50%; a grande maioria da amostra (64%) estava
na classe III pela classificação da NYHA. A cardiopatia isquêmica e a doença de Chagas
foram as principais etiologias observadas (39% e 29%, respectivamente). Os pacientes
estavam relativamente bem tratados, recebendo terapia médica otimizada (betabloqueadores
em 90%, inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona em 84% e antagonistas
dos receptores mineralocorticoides em 66%).
Este artigo tem várias descobertas interessantes que merecem destaque. Tanto a CVF
quanto a VEF1/CVF não se correlacionaram com melhor ou pior prognóstico durante o
seguimento médio. Por outro lado, após uma análise de sensibilidade, uma VEF1/CVF
baixa foi indicada como um potencial marcador de risco para aumento de eventos adversos
cardiovasculares maiores nos indivíduos teoricamente mais graves, ou seja, com FEVE
<50%. Além disso, um risco maior de eventos cardiovasculares foi observado naqueles
com pressão inspiratória máxima reduzida e VEF1/CVF (razão de risco 1,72; intervalo
de confiança de 95%, 1,14 a 2,61).
Décadas atrás, Tockman et al.
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relataram o VEF1 como um preditor independente de mortalidade CV após acompanhar uma
coorte de homens aparentemente saudáveis. Em outros estudos observacionais que avaliaram
o prognóstico da pressão inspiratória máxima em pacientes com IC, Hamazaki et al.
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relataram menor incidência de eventos clínicos em pacientes com grande variedade de
FEVE (maioria na classe funcional II da NYHA) quando uma pressão inspiratória máxima
maior estava presente, após sessões de reabilitação cardíaca e com seguimento médio
de 1,8 anos, mesmo após ajuste para fatores de confusão. Meyer et al. sugeriram que
a força muscular inspiratória poderia ser útil na estratificação de risco dos pacientes.
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Apesar dos achados interessantes, que em certa medida corroboram estudos anteriores,
o estudo de Ramalho et al.
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não permite inferências causais com segurança devido ao seu desenho observacional
e deve ser interpretado à luz desta e de outras possíveis limitações. Embora esteja
bem estabelecido que a IC é comumente caracterizada por anormalidade dos músculos
respiratórios, com consequente declínio na qualidade de vida e possivelmente pior
prognóstico, seria prematuro concluir definitivamente uma associação direta entre
a pressão inspiratória máxima ou VEF1/CVF com risco aumentado de eventos cardiovasculares
nesta população, independentemente da FEVE. Apesar destes comentários, este estudo
fornece informações importantes para a literatura e reacende a possibilidade de que
a VEF1/CVF possa ser usada como ferramenta prognóstica, oferecendo informações incrementais
no cenário da IC, especialmente no grupo de pacientes considerados de maior risco.
Ainda assim, seria prudente afirmar que a relação entre esses marcadores e o prognóstico
desses indivíduos permanece incerta.